Tuesday, March 01, 2011

Orwell Ficou Porque Tem Bolo

Todo mundo já falou sobre este livro, mas originalidade é superestimada, mesmo...

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Em determinado momento de 1984, quando Winston Smith pergunta a O’Brien se o conteúdo do livro do revolucionário Emmanuel Goldstein é real, o torturador responde que “como descrição, é verdadeiro. Mas o que ele propõe é puro nonsense”. Trata-se, portanto, de uma alegoria do próprio livro que o leitor tem em mãos. Claro que George Orwell não pensava nisso quando escreveu seu clássico, lááá em 1948.

De uma certa forma, ele conseguiu prever o que viria nos anos seguintes: polarização política, posições autoritárias semelhantes travestidas de ideologias diferentes, controle da população via tecnologia e ignorância massificada. Apenas verdadeiros gênios conseguem antever os fins. Mas Orwell não acertou os meios.

(Muito da disposição social de 1984 seria impossível de acontecer no mundo em que vivemos, por simples questões culturais - e nem um milhão de bombas atômicas mudariam esse panorama, na minha opinião. Para se ter uma idéia, América Latina e Inglaterra, por exemplo, estavam sob o controle dos mesmos ditadores. Difícil de imaginar ingleses e brasileiros, tão diferentes em seus costumes, se curvando ao mesmo tipo de repressão. Para isso havia, digamos, Margaret Tatcher e Garrastazu Médici, que compartilhavam quase que os mesmos ideais, mas com métodos bastante díspares)

Ainda assim, há muitos aspectos no livro que sugerem uma analogia competente com o que vivemos hoje. Qual a diferença da “prole”, que apenas faz ouvir sua voz quando faltam utensílios de cozinha e outras besteiras, para o brasileiro, que só parece gritar bem alto quando roubam seu time no futebol? E a gastança de recursos via guerra, para impedir a ascensão social dos cidadãos, não te faz pensar para onde vai todo aquele dinheiro do petróleo no Oriente Médio, onde apenas alguns prosperam e a maioria perece? Os exemplos são muitos e nem todos me ocorreram ainda.

O final desolador do livro me fez pensar. Se no parágrafo acima reclamei que no Brasil só se chora a derrota no futebol, a picuinha atual que se instalou no esporte (essa coisa toda da Globo contra o Clube dos 13, manja?) sugere que nosso final pode ser ainda mais trágico do que o de Winston. A manutenção de determinados políticos, os votos de protesto, a impunidade, nosso sistema legislativo, mais a decadência socioeconômica além-mar que inunda nossos telejornais todas as noites – tudo isso determina que ele realmente deverá ser pior.

Orwell errou. Não existe o Alto, o Meio e o Baixo. Existe apenas o Alto, que toma suas decisões arbitrárias, e o Baixo, que “engole sem fazer careta”. Qual a nossa chance, sinceramente? Pega o último a tentar abaixar as calças do sistema, Julian Assange. Antes que o sujeito pudesse jogar o barro mais fedido no ventilador, conseguiram fazê-lo parecer um palhaço. Sem haver necessidade de torturas, sequestros e lavagens cerebrais, como ocorria com os membros rebeldes do Partido existente no livro.

Mas Orwell acertou: era isso mesmo que eles faziam com os “proles” que significavam alguma ameaça ao Partido. Eliminavam sua relevância antes que ela fosse relevante. Daí, antes que alguém se desse conta do que estava sendo feito de sua vida, voltavam a reclamar da falta de panelas baratas no mercado.

Li essa versão bonita - o Grande Irmão que mandou comprar
O tal Ministério da Verdade, que controla as informações que chegam à população, é inútil em nosso 1984 particular porque já usamos o tal doublethink (“duplipensar” em português, mas achei a tradução muito feia. É uma espécie de filtro mental dentro de cada um que age de acordo com os interesses dos manda-chuvas) espontaneamente. Por exemplo, já esquecemos exatamente os crimes que Sarney cometeu para ser um político tão odiado. E aí deixamos pra lá até ele aparecer com mais uma falcatrua. Eu mesmo faço a mea-culpa e admito que se você me perguntar assim, de sopetão, não sei. É tanta sujeira que acaba sendo inevitável que a maioria dela acabe escorregando para debaixo do tapete.

Mas se quiser saber é só jogar no Google. Quando? Ahh, sei lá. Nesse sentido a internet serve como uma ferramenta eficaz de alienação. Toda a maldade está disponibilizada nela, mas como competir com tantos vídeos engraçados e aplicativos revolucionários? Como se engajar quando nos oferecem tantos produtos atrativos e que têm tanto a ver com a gente?

Os produtos, escondidos por trás de perfis de twitter e vídeos recomendados no youtube, aliás, provaram ser muito mais úteis do que a repressão. Não se engane, neste momento você está sentado bem na frente de uma teletela (mais uma tradução feia, telescreen é bem melhor). Eles sabem que perfis você visitou, com quem você andou saindo e para que sites de putaria você tocou uma punhetinha. E aí, em vez de coergir, eles incentivam. Aumente seu pênis, siga o Will Ferrell, compre esta caneca do Star Wars.

É uma vida doce. Adoro comprar supérfluos. Meu dinheiro é todo investido nisso, e eu agradeço por poder adquirir o enésimo CD em vez de aceitar aquilo que alguém mandou eu comprar. Mas não nego que fui sugestionado e que estou alienado.

1984 é um livro maravilhoso, mas impraticável. O ser humano é naturalmente egoísta e movido a prazer. Não há lavagem cerebral que mude isso. Se não existe um objetivo implícito em nossa existência, nem que seja pagar a prestação do carro, nós sucumbimos, fisicamente até. E é por isso que nossos líderes de 2011 são muito mais inteligentes do que o Grande Irmão. Eles nos dão aquele gostinho doce que fizeram a gente acreditar que precisa.

E falando sério, você aceitaria ser manipulado se não pudesse acompanhar em tempo real o descontrole midiático de Charlie Sheen?

Assim é o mundo polarizado de 1984

 
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