Nas últimas quase duas semanas, todo mundo falou do tumulto que ocorreu durante o show dos Racionais MCs na Virada Cultural. Falaram tanto, mas tanto, que a coisa se transformou num problemão. Até a MTV reservou um de seus programas pra falar sobre o assunto. Mas eu, bom, eu nem mensurei muito o tamanho da coisa. Talvez porque seja retardado, ou desligado, ou ache que tumultos são uma coisa corriqueira nesse mundo fodido que nós vivemos. Mas, certo mesmo, é que, após ver uma coluna dedicada ao tema até mesmo no Omelete, me senti irresistivelmente impelido a falar sobre o assunto. Não por eu manjar muito da coisa. Mas pela simples necessidade, quase básica, de dar pitaco em assuntos polêmicos.
Não que tumultos sejam uma coisa normal ou aceitável, mas pra mim, confusão num show de rap, com um monte de “playboy” assistindo (afinal, era um show gratuito na Praça da Sé, ia gente de todo tipo), é uma coisa bastante esperada. O rap dos Racionais (assim como grande parcela do rap nacional) não se comunica com quem não é da periferia, e pretende continuar assim. E isso reflete nos seus fãs – ou “trutas”. A hostilidade criada em torno do grupo e dos admiradores vai sempre resultar nessa explosão de ânimos quando os hostilizados dividirem o mesmo ambiente dos hostis. Difícil é tomar simpatia pelos hostilizados.
A princípio, esses são mesmo os mais pobres, esmagados por um sistema que dá poucas chances de ascensão social e cada vez mais marginaliza os menos afortunados. Nada disso é mentira. Mas o modo violento como eles olham, se referem e até mesmo tratam os “playboys” (se bem que pros “manos”, qualquer loiro de olho azul é automaticamente um repressor ofendendo suas famílias) faz com que a distância entre essas pessoas seja ainda maior – e com mais espinhos pelo caminho. Qualquer um com uma roupa mais bacana sente-se constrangido pela própria existência na presença desses caras. É o preconceito do desfavorecido contra o favorecido. Justificado, justificadíssimo, mas tão perverso quanto o outro.
E no meio disso tudo aparece o rap brasileiro (paulistano?), disparando contra tudo e todos, e levando consigo um sem-número de moleques que acreditam naquilo e repetem as idéias, como um mantra. Não sou ingênuo para achar que a polícia é santa, mas o que faz um gambé quando, ao ordenar disciplina, ouve urros de protesto do público e recebe indiferença dos artistas? Desce a mão, mesmo. E é inocência pensar que não fariam isso.
Se o show em questão fosse do Marcelo D2, por exemplo, acredito que não teria havido essa confusão. Porque o D2 conseguiu, enfim, transformar seu rap numa coisa vendável. Ele se auto intitula o tal pesadelo do pop, mas ele é extremamente pop. Brilhante! Um monte de branquelo rico escuta aquilo se achando o malandrão, o anti-pop, o mano do gueto, e aí o Marcelo vende pra cacete. Mais ou menos como funciona há um bom tempo nos Estados Unidos. Melhor: ele incutiu umas doses de música brasileira na sua música e com isso se livrou do estigma de ser um clone dos rappers americanos e ainda conseguiu uns fãs de samba. Em 2005, levou o VMB de melhor clipe de MPB!!! Em 2006, voltou a levar, mas dessa vez como artista de rap.
Então, voltando ao hipotético show do D2, o ambiente seria muito mais miscigenado, e os manos que estivessem ali não se sentiriam tão donos da música, da banda e, conseqüentemente, tão invadidos. Aproveitariam a música congregados aos playboys e pattys e sambistas universitários de calça de saco de batata. Viu que poético?
Nisso, os Racionais seguem separados do resto do mundo. E vão continuar, enquanto se mantiverem irredutíveis em relação à sua posição (musical e comportamental) de parco alcance. Enquanto isso, não se surpreenda com tumultos e bombas de gás lacrimogêneo.