Monday, May 24, 2010

Música é Devoção

Meu melhor texto pra Tribuna até agora. Enjoy.


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“O que me fez ter esperança no futuro da poesia foi o concerto dos Rolling Stones que vi no Madison Square Garden [Nova York]. Mick Jagger estava cansado e todo detonado. Era uma terça-feira, ele tinha feito dois shows e estava de fato à beira de um colapso – mas o tipo de colapso que transcende para a mágica. Jagger estava tão cansado que precisou da energia da plateia. (...) Adoro a música dos Rolling Stones, mas o principal não foi a música, mas a performance, a performance visceral.”

A citação acima foi tirada do livro sobre a história do punk, Mate-me Por Favor, num depoimento da maior enganadora da época, Patti Smith. Num movimento musical cheio de charlatões e enganadores, ser o maior deles é um feito. Patti, até montar sua banda e gravar seu primeiro disco, não passava de uma fã de rock and roll e Rimbaud que circulava pelo meio “descolado” dos pré-punks de Nova York. Ela se importava mais em saber se seu cabelo estava parecido com o de Keith Richards e em quem eram seus amigos do que em aprender a tocar um instrumento. Uma poseuse de primeira linha.

No entanto, Patti foi capaz de transformar toda a sua adoração pelos símbolos da contracultura em catarse. O fenômeno observado por ela no show dos Rolling Stones está para sempre representado em seu disco de estreia, Horses, de 1975. Você pode ouvir a voz ofegante de Smith soletrando, pedindo clemência, amaldiçoando e conseguindo a redenção. Naquele ano, os hippies estavam acabados, a guerra do Vietnã também e toda essa necessidade de redenção era reflexo de um mundo megalomaníaco e de ideais esvaziados.

A resposta nesse cenário desolador, como não poderia deixar de ser (e vem sendo desde a alvorada dos tempos), foi a fé. No caso de Patti Smith, no rock. No caso de Tim Maia, numa seita esquisita, que “não é doutrina nem religião”. O panorama sociocultural no Brasil do mesmo ano de 1975 era diferente dos Estados Unidos nas particularidades, mas não na essência. A ditadura militar começava a abrandar, mas o estrago já estava feito. O brasileiro vivia num país atrasado e as feridas abertas pelos militares ainda não haviam cicatrizado.

Tim Maia costumava dizer que praticava triatlo: bebia, fumava e cheirava. Vivia uma vida hedonista, de festas e excessos. Até que, em algum momento no início dos anos 70, encontrou respostas na Cultura Racional, uma espécie de doutrina fundada por Manoel Jacintho Coelho. Ficou claro para todo mundo que a seita era pura picaretagem, mas Tim, finalmente sóbrio e iluminado pelo que acreditava ser a sabedoria suprema do Universo, cunhou dois de seus melhores álbuns entre 1975 e 76. Depois, percebeu que tudo aquilo era uma grande bobagem e voltou para o “triatlo”.

Entre pessoas que gostam de música pop, por alguma razão, o número de ateus, agnósticos e gente que simplesmente não dá bola pra religião ou Deus é altíssimo. Ainda assim, Horses e os dois volumes da Fase Racional são considerados clássicos até hoje. Por que relevamos a pose de Patti Smith? Por que fazemos vista grossa para a religião bizarra pela qual Tim Maia se embrenhou? Por que não nos constrange nem um pouco uma música como Grande Deus, de Cartola, ou os velhos spirituals entoados por Elvis Presley, Johnny Cash e tantos outros pioneiros?

A explicação está no fato de que música é devoção. Quando empregamos toda a nossa energia numa escala pentatônica, ou quando somos levados a outro mundo por uma melodia, estamos vivenciando uma experiência de fé. No momento em que deixamos uma pessoa em cima de um palco ditar como será nossa próxima hora e meia, entregamos nossa alma a ela da mesma forma que um fiel se entrega ao pastor, ao padre, ao rabino. É uma comparação meio assustadora, ainda que inevitável. Mas deixa pra lá. Enquanto a música não te pedir dízimo, está tudo certo.

Rock e Política

Fiz esta matéria/entrevista com o Macaco Bong, que tocou em Indaiatuba no último sábado, durante a Virada Cultural. A conversa foi mais sobre política e música independente do que sobre o grupo em si. Saiu na Tribuna.

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Numa casa/estúdio em Perdizes, zona oeste de São Paulo, está acontecendo uma festa. Luzes coloridas, caixas de som genialmente feitas com recipientes plásticos, cerveja na geladeira. Não param de chegar músicos jovens e barbados com suas bandas, carregando instrumentos. Uma jam session e a exibição de um curta-metragem engrossam o caldo. Pode não parecer, tudo isso faz parte do lançamento do escritório do Fora do Eixo em São Paulo.

O Circuito Fora do Eixo começou como uma idéia dentro de uma produtora, mas cresceu a ponto de se tornar uma organização com escritórios por todos os estados do Brasil, exceto Maranhão e Piauí. Não há uma razão em especial para esses estados estarem de fora, só “não surgiram pessoas interessadas em montar escritórios por lá ainda. Mas em pouco tempo isso deve mudar”, pondera Ney Hugo, baixista do Macaco Bong. O Circuito tem como principal objetivo viabilizar a auto-gestão da música independente brasileira e conta com uma disposição linear, onde não há hierarquia e pouca burocracia. Cada escritório é tocado por qualquer pessoa interessada em trazer música independente para sua região e só existem algumas obrigações, como montar um festival independente por ano, para não virar bagunça.

Dois dias antes da festa, o Macaco Bong tocava na Virada Cultural em São Paulo, substituindo a Música do Mato. “Substituição” talvez não seja a palavra mais adequada, já que o projeto consiste no próprio Macaco e outros grupos do Mato Grosso mostrando um pouco do que vem sendo feito na música por lá. “A gente só estendeu a nossa parte porque os outros músicos não puderam vir”, explica o baterista Ynaiã Benthroldo. Por outro lado, existe sim uma vontade dos integrantes em fortalecer a cena independente no Brasil e não deixar espaços em branco nos festivais. Já que estão por lá e alguém faltou, por que não arrumar os instrumentos e mandar ver?

Esse comportamento voluntarioso não reside em pensamentos envaidecidos. Pelo contrário, a garra com a qual o grupo defende os ideais do Fora do Eixo vem de seu nascimento. “O Macaco Bong surgiu dentro do Espaço Cubo, como parte de todo o projeto. Sem o Fora do Eixo, a banda não existiria, mas o Circuito existe fácil sem a banda”, conta Ney.

O Espaço Cubo é uma produtora multicultural que organiza o festival Calango desde 2001 (à época, ainda se chamava Cubo Mágico). Em 2005, após a união do gestor Pablo Capilé com outros produtores do ramo independente, surgiu o Circuito Fora do Eixo, que leva as idéias surgidas em Cuiabá para o resto do Brasil, por meio dos escritórios. Mais ou menos à mesma época, surgiu a Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin), que deu um ar de “legitimidade” aos festivais, principalmente por se tornar uma ferramenta facilitadora no diálogo com órgãos estatais e empresas. De duas uma: ou é um plano de dominação mundial sem precedentes ou é a música independente se organizando como “nunca antes na história deste país”.

O cenário favorável para esse fortalecimento da cena independente vem de dois aspectos principais. O primeiro é a alta do marketing cultural, que bebe na fonte dos incentivos fiscais (como o ProAC e a Lei Rouanet) e do interesse das empresas em se comunicar com seu público de forma mais direta. Assim, projetos como os festivais são viabilizados por meio da iniciativa privada. Já o interesse do público, que motiva essas ações, parte do maior acesso à arte alternativa, viabilizado pela internet. Basicamente, tudo isso que está acontecendo vem da possibilidade do consumidor escutar o que quiser, onde quer que esteja. Se uma banda do Fora do Eixo tem algum público em Indaiatuba hoje, isso se deve quase que exclusivamente à internet.

A inovação mais revolucionária (e insólita) do Espaço Cubo é o Cubo Card, espécie de moeda alternativa aceita nos pontos do Fora do Eixo pelo Brasil. Bandas, produtores e outros envolvidos nos projetos organizados pelo Espaço recebem Cubo Cards que podem ser trocados por produtos e serviços – igualzinho dinheiro normal. As críticas à moeda partem de um princípio básico: ela não é aceita em muitos lugares. Ney Hugo rebate as críticas argumentando que os Cubo Cards podem servir como complemento ao Real, uma vez que eles já são aceitos em alguns estabelecimentos de Cuiabá e podem começar a surgir em outros lugares. “Em 2004, se você dissesse que seria possível comer num restaurante com os Cards, ninguém acreditaria. Hoje em dia, as lanchonetes que funcionam no Calango nem trocam mais os Cards que recebem durante o festival, porque o dono sabe que, por exemplo, pode comprar material escolar para o filho com eles, numa papelaria parceira nossa”.

Além do Fora do Eixo, a Abrafin também recebe críticas. Muita gente torce o nariz para a impossibilidade dos festivais em pagar cachê e traslado a todas as bandas. Na visão de Ney, os detratores se encaixam em dois grupos principais: os que não conhecem os projetos de perto e os artistas que se consideram talentosos demais para batalhar. O argumento tem conexão com a filosofia do Macaco Bong. O título do primeiro disco da banda é Artista Igual Pedreiro, enfatizando a visão de que um músico tem que ralar da mesma maneira que qualquer outro trabalhador.

“Nossa gestão é totalmente aberta, está tudo relatado, as planilhas estão no site (www.foradoeixo.org.br/tec)... Nós estamos abertos e nos sentimos seguros nesse debate porque nosso embasamento é muito forte. Se um artista acha que sua arte é importante demais para que ele tenha trabalho com ela, essa pessoa não nos interessa. Preferimos nos envolver com o garoto que, se não fosse pelo Fora do Eixo, estaria vivendo uma rotina frustrante de trabalho.” O baixista lembra que esse investimento dos conjuntos iniciantes – tanto neles mesmos quanto na cena musical que pretendem formar – é um antídoto importante contra o monopólio das grandes gravadoras, que durante muito tempo limitaram as atenções musicais no país.

Aí me pergunto: e quando o projeto finalmente der certo e as bandas, mesmo no âmbito independente, começarem a firmar parcerias com a iniciativa privada, como fez Mallu Magalhães em seu primeiro CD? Será que elas não estarão presas a um novo “chefe”, com contas a prestar a pessoas que não dizem respeito à sua arte? Um dos grandes trunfos desse circuito alternativo, que engloba o Fora do Eixo, a Abrafin e tantos outros coletivos, é libertar os artistas das exigências comerciais das gravadoras multinacionais, permitindo-lhes fazer música de todo tipo. É daí que vem a preocupação.

Ney Hugo, no entanto, minimiza: “O Fora do Eixo não é contra parcerias com a iniciativa privada, muito pelo contrário. Se houver algum tipo de controle por parte das empresas, somos contra, mas no caso de uma parceria boa para ambas as partes, apoiamos.” A preocupação dos envolvidos em viabilizar opções e em não desprezar nenhum lado do debate está enraizada na constatação óbvia de que ninguém consegue triunfar sozinho. Pelo menos quando o desafio é unificar e fortificar a cena independente brasileira.

Se nada disso lhe parece interessante e se você só quer curtir um som, não faz mal. O engajamento político do Macaco Bong não interfere negativamente na sua música, da mesma forma que sua mensagem pode acabar abrindo seus olhos. Você gosta de guitarra, baixo e bateria? Curte ver performers ensandecidos em cima de um palco? Então aparece no Parque Ecológico hoje, às 19h30. Periga ser o show do ano.

Tuesday, May 18, 2010

John Frusciante

Mais um da Tribuna, já fazia tempo. Tchangas afuniladas são isso aí.

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No comecinho de abril, os ouvintes da rádio BBC 6 Music elegeram John Frusciante o melhor guitarrista dos últimos 30 anos. Sem dúvida, o ex- Red Hot Chili Peppers fez parte de uma das minhas bandas de rock favoritas e ele próprio, com seu trabalho solo, teve as manhas de fazer um dos 10 discos da minha vida. Mesmo assim, não acho que seja o mais importante desde 1980.

Basicamente porque Frusciante nunca foi especialmente imprescindível como guitarrista na sua própria banda. Antes dele, veio o finado Hillel Slovak, que praticamente criou a guitarra do funk rock e viria a inspirar seu sucessor, um fã antes mesmo de entrar para a banda. Mesmo quando largou os Chili Peppers no meio dos anos 90, Frusciante foi substituído com bastante maestria por Dave Navarro (e arrenego de quem afirma que One Hot Minute é o pior disco do conjunto).

Só que bróder: quem disse que um bom guitarrista só sabe tocar bem seu instrumento? Se no rock a figura do tocador de guitarra acabou associada a uma espécie de camisa 10, esperto é o músico que assume a tarefa com a cabeça erguida, olhando para o gol. Um exemplo legal é Jonny Greenwood, do Radiohead. Sem se limitar às seis cordas, Greenwood programa samples e batidas, arranja músicas, toca piano, sintetizadores e até uma espécie de rádio de pilha.

Já Frusciante é um artista mais, digamos, analógico. Se os Chili Peppers estouraram no mundo todo com Blood Sugar Sex Magik e depois tomaram conta dele com Californication, muito se deve à capacidade do guitarrista em criar melodias, backing vocals e adaptar seus maneirismos ao estilo pulsante e suingado da banda.

Fã de Jimi Hendrix, Frank Zappa, Marc Bolan, além de bandas punk, o nova-iorquino radicado na Califórnia chegou a estudar guitarra por um tempo numa das escolas mais renomadas dos Estados Unidos, mas largou o curso rapidamente. Aos quinze anos, Frusciante assistiu a um show de sua futura banda pela primeira vez e instantaneamente tornou-se fã. Pouco tempo depois aprendeu todas as músicas do grupo e impressionou os veteranos Anthony Kiedis e Flea, que o elegeram para substituir Hillel Slovak, morto em 1988 numa overdose de heroína.

Nos anos seguintes, John gravou Mother’s Milk e Blood Sugar Sex Magik com o Red Hot Chili Peppers, e o segundo foi um enorme sucesso. Cansado das turnês e do que a banda estava virando, ele resolveu jogar tudo para o alto e se demitiu. Essa fase coincidiu com o princípio de seu vício em heroína e nos anos seguintes, enquanto seus antigos companheiros gravavam One Hot Minute com Dave Navarro, Frusciante passou em casa, consumindo heroína e gravando discos terríveis. A nóia era tanta que ele perdeu todos os dentes e Smile From The Streets You Hold, seu segundo álbum solo, é um retrato fiel do que é o fundo do poço.

Em 1998, depois da saída de Navarro, John finalmente estava sóbrio e quis voltar para o Red Hot Chili Peppers. Do casamento renovado, veio Californication, seu maior sucesso comercial até o momento. É o trabalho mais “autoral” do guitarista com a banda, e é possível encontrar a primeira grande ruptura com o funk que vinham tocando havia 15 anos. Em 2002, lançaram By The Way e logo depois, Frusciante produziria sua obra-prima solo (e, como destacado anteriormente, um dos dez discos da vida deste colunista): Shadows Collide With People.

O álbum de 2004 soa como um suspiro aliviado, resignado de um ex-viciado com feridas ainda cicatrizando. Nosso “melhor guitarrista dos últimos 30 anos” mostra que é um cantor de primeiríssima linha – na realidade, muito melhor do que Anthony Kiedis – e ainda exibe habilidades como produtor musical, com umas pirações muito doidas entre as 17 faixas do disco. Ele ainda voltou para gravar Stadium Arcadium com os Chili Peppers, mas no fim do ano passado, deixou o conjunto.

Dito isso tudo, ainda tenho coragem de manter minha posição: John Frusciante não é o maior guitarrista dos últimos 30 anos. Mas isso não exclui o valor de um cara que desceu ao inferno e voltou, foi pivotal na confecção de dois dos trabalhos musicais de maior sucesso dos anos 90 e ainda fez um dos meus LPs favoritos. Tá bom ou quer mais?

 
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