Tuesday, September 09, 2008

Mantido na Realidade

A leitura prolongada e ininterrupta de Charles Bukowski mais a ingestão de cannabis sativa produzem monstros como o conto a seguir.

***

Talvez a profissão mais triste do mundo seja a de dançarina do Faustão. Seus sorrisos chegam a ser aterrorizantes de tão falsos e mecânicos, além de terem de agüentar o apresentador mais gordo e estúpido de que se tem notícia e alguns xucros na platéia. O Faustão não é nem melhor nem pior do que os outros, uns diriam, mas a imagem das suas dançarinas é certamente a mais triste.

Por alguma ironia, então, como deveria ser, me arranjaram um encontro com uma dançarina do Faustão. Quase isso. Um conhecido tinha uma garota. Ela queria sair com ele e com sua amiga. Porque não fazer os dois ao mesmo tempo? Então alguém tinha que entreter a amiga dançarina do Faustão. Eu.

Seu nome era Márcia e tinha boas pernas e um rosto bonito. Vi pelo orkut. Mais um escravo da tecnologia. Enfim, boas pernas e rosto e boas fotos na praia. Acho que é o que eles exigem quando você quer ser dançarina do Faustão.

Isso me animou um pouco, mas não me impediu de passar o dia com tédio e pessimista. Em relação a outras coisas, já que em relação à Márcia eu pensava muito pouco. Talvez seja um fracassado por não pensar nos outros, mas pouco importa. Márcia era uma garota legal, saberia entender. Caguei, tomei um banho, fumei uma bombinha de haxixe e esperei. “A morte”, diria Hank.

Nos encontraríamos no Moe’s, um bar um tanto quanto hypado no centro. Pelo caminho, passei pela Sé. Gosto dali. Toda a sujeira e pobreza e depredação convivendo com o centro de uma cidade tão grande, onde tudo começa, percorre e termina, te fazem se colocar no seu devido lugar. Mantém as coisas na realidade.

Encontrei-os na frente do Moe’s, enquanto Paul Banks dizia “baby, baby, you really look bad” nos fones de meu MP3. Interpol também mantém as coisas na realidade, às vezes. Podia ver o Volks surrado de meu conhecido ali na outra esquina. As garotas estavam de vestido, com decote, tudo ia ser ok. Parecia uma noite calma e pouco barulhenta, ótimo. E, sinceramente, continuou a correr tudo bem por algum tempo.

Mas quando o cara e sua garota saíram e deixaram Márcia e eu sozinhos, foi como se perdêssemos aquele elo maravilhoso, quase mágico, que me fazia sentir bem ao lado de uma dançarina do Faustão, uma hippie estudante de letras e um cara que cagou nas calças até os 15 anos, num lugar com música ruim e cerveja quase quente. Márcia era uma garota legal, aposto que entendeu. Como ela aparentava ter alguma cultura, achei que uma conversa de maior conteúdo poderia segurar as pontas até que eu pensasse em alguma outra estratégia. Olhei bem fundo naquele decote e pernas e tentei:

- Você curte... hum... ehehe...

- Oi?

- Platão, você curte Platão?

Ela começou um discurso sobre Platão, provavelmente sabia mais do que qualquer um de nós ali naquela sala, naquele bar imundo. Não parava de falar, via toda sua boca, lábios, dentes, bochechas, língua, saliva, prepararem palavras intermináveis e perenes, como num arsenal. Oh, cara, foda-se Platão. Mas não conseguia emendar outro assunto.

- Então você considera Platão um ídolo?

- Considero, ele era muito bom! – uma resposta sem muito requinte, mas ainda assim bem decidida. Apelei para a velha técnica da confusão, com um pouco da minha licença poética:

- Você acha que pensamentos sobre ele se intrometem na sua mente?

- Cara, você ta chapado?

Não respondi. Eu estava, o que poderia ter dito?

As coisas se mantiveram assim, tediosas e constrangedoras como a tarde havia sido. Num determinado momento, o outro casal voltou e Márcia levantou-se num salto meio indecente e histérico e disse para a amiga:

- Vamos dançar!

Dançavam como se fossem duas lésbicas ou como se estivessem fazendo a dança do acasalamento. Odeio quando seres humanos se portam como animais irracionais. Eu e o cara não falamos nada. Apenas observamos a cena com os braços cruzados e olhar vazio. Por algum motivo, ela me parecia atraente, mesmo com toda aquela chatice de Platão e o emprego triste e a censura ao meu beque. Eu olhava para aquela garota que me deixava quase de pau duro e que não tinha nenhuma conexão comigo e pensava no que eu poderia ainda fazer para tornar uma noite aborrecida um pouco menos aborrecida.

O sorriso dela, por outro lado, parecia exagerado, como alguém que chama todos os holofotes para si. Um pouco perturbador olhar para toda aquela boca aberta, cheia de dentes, querendo ser acesa com neon. Por que todos nós não podemos agir como seres humanos? Mas o balanço ainda era positivo e eu ainda queria poder comer aquela garota e quem sabe tomar café da manhã depois.

De repente, por sorte, talvez, a conversa voltou a um nível bom, com cadência e palavras suficientes. Nem muitas, nem poucas. Então tomei os últimos goles de minha cerveja e me aproximei dela, quase fazendo nossos narizes se tocarem.

- Vamos foder agora, ali do lado.

Recebi um olhar de asco e, com uma expressão ressentida, Márcia virou-se de costas para mim, para nunca mais olhar. Pouco depois, convenceu a amiga de irem embora. Despediram-se e foram todos no Volks, provavelmente esse outro cara ia comer duas de uma vez, o grande filho de uma puta.

Fiquei no bar e pedi uma dose de pinga. Para acabar bem com uma noite muito aborrecida. Vi uma velha tingida olhando para mim e lambendo seu canudo como se fosse uma rola. Achei que era hora de sair dali. Na volta, enquanto passava pela Sé mais uma vez, já amanhecia. Um cara com metade do rosto deformada olhou para dentro dos meus olhos. Não importava a que horas você estava por ali, sempre manteria as coisas reais.

Subi para o ônibus pensando que as coisas poderiam ser piores.

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