Texto baseado no quarto disco do Pearl Jam. Tipo aqueles Mojo Books, mas muito curto pra um Mojo Book. Oh, well.
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Há quanto tempo estava ali? Podiam ser semanas ou uns poucos meses. Ou mais. Sem psicose, sem se considerar o maior misantropo da Terra. Um dia, ele simplesmente resolveu ficar. Nenhuma euforia, nenhuma ligação e nenhum objetivo a não ser se desintoxicar. Alguns amigos visitaram, fizeram o próprio café e serviram-se de conhaque sozinhos. A namorada tentou compreender, mas já tinha desistido. E sumido.
Lá fora, uma pilha de jornais se decompunha. Mas não havia tanta diferença entre a manchete dos primeiros e a dos mais novos, ainda inteiros. Era um ciclo e, se fechando para o mundo, ele mantinha seus olhos afastados desse ciclo. A grama do jardim estava alta, mas parecia mais saudável do que nunca, e observá-la era um dos seus passatempos. Seu nome era James, a propósito, e ele não havia se tornado um retardado. Ainda possuia pensamentos, ainda sabia do que se tratavam os anúncios no outdoor voltado pra janela da cozinha (apesar de ressaltar para si mesmo que aquilo era irrelevante e inócuo). James, ele nunca quis ser um ermitão.
Mas era preciso afogar-se em si mesmo e esperar. Tudo havia começado sem intenção, mas agora era uma busca. Sincera e imprevisível. Ler um livro ou seguir a trajetória de uma formiga ou tocar uma música no violão de corda de nylon que ele tinha roubado do primo há quase 15 anos. Eram todas missões e encaradas com a seriedade que mereciam.
Havia um amigo, um conhecido, que sempre aparecia e era o único com quem James falava. Porque era ele o único que sabia conversar, com as pausas necessárias e sem nenhum julgamento, como se estivesse alheio ao isolamento. E falava do tempo, e de algumas coisas do passado, trazia livros e cigarros, de vez em quando comentava alguma novidade do mundo lá fora, como se não pudesse se conter. Era algo um pouco proibido, sentia. James encarcerava-se por querer estar encarcerado e muitas informações quebrariam esse voto, despedaçariam essa busca. E depois, com o cenho franzido, flutuava para a porta de entrada e dizia adeus.
Por muito tempo, se esqueceu do lixo e do banho. Depois, lembrou-se. E aí colocava o lixo para fora de vez em quando e tomava banhos regularmente. Mais pela sensação do ar fresco do jardim e pela sensação do corpo imerso na água do que pela higiene em si. Sem tempo para higiene. Por acaso ela estava atrelada ao bem-estar que James precisava sentir.
Ao ser engolfado pela água, certo dia, ouviu a campainha. E depois ouviu de novo. Estava absorto em pensamentos, em conclusões, mas algum pedaço da sua consciência ainda estava conectado ao mundo “real”, onde atender à campainha significava alguma coisa. O quê, ele não sabia ao certo. Sem roupas ou toalhas e ainda pingando, abriu a porta. Um carteiro vestido de amarelo o encarava. James abriu a boca e falou pela primeira vez em muito tempo. Sua voz saiu fraca e rouca no começo, e depois foi se fortalecendo até tornar-se quase um brado.
- A vida tem dois lados, um bom e um ruim. E é como uma bicicleta, quando você tira as mãos, ela tende a virar pra um lado, sempre o ruim. É preciso buscar sempre o lado bom e ficar cansado, por nunca poder parar.
E fechou a porta.
Não teve tempo para sentir-se um clichê ambulante, um ermitão estabanado. Imergiu na água de novo e manteve-se funcionando, manteve-se pensando. O carteiro nunca mais voltou. Deixava as cartas na soleira da porta, às vezes as empurrava por baixo dela.
A maioria delas, das cartas, não importavam. O que importava a James agora era pensar. Ele tanto pensava que já havia desenvolvido um vício. Quer dizer, todos nós pensamos o tempo todo, mas ele sentia uma necessidade em filosofar acerca de tudo, do mais insignificante prego segurando um quadro na parede aos gravíssimos problemas da Terra. Mas seria assim tão insignificante aquele prego? Afinal de contas, ele segurava o quadro que seus pais tanto apreciaram um dia, e se um prego suportava algo que trazia alguma felicidade a alguém, não podia ser tão descartável. Era nesse tipo de besteira que James se prendia e, definitivamente, não era o ponto. Ele chorou algumas vezes, assombrado pela sua compulsão e ameaçou voltar para o “mundo lá fora”, mas quando encostava os dedos na maçaneta gelada, desistia. Algo ainda o prendia ali.
James nasceu numa sexta-feira de primavera em 1978, cresceu rápido e aprendeu a sentir raiva de muita coisa muito cedo. Da injustiça que via nas ruas todos os dias, dos pais ricos e vazios, das pernas longas demais, dos colegas de classe sem objetivo na vida, das namoradas possessivas e das infiéis, das dores de cabeça constantes que sentia... Ele odiava e amava sem parar, até o cérebro explodir, até as entranhas queimarem em bile, até os olhos cegarem de fúria. Vendo o mundo com tanta paixão, virou fotógrafo de pessoas, de situações, de tudo o que chamava a sua atenção. E o que não chamava, James tentava fazer chamar. Canais de esgoto, ruínas, chaminés, campos abertos, pátios vazios, calçadas imundas. Com a lente correta, o brilho e a nitidez bem escolhidas e alguns efeitos de computador, James fez arte de tudo isso e ficou conhecido. Ganhou o dinheiro que se recusou a receber dos pais, comprou uma casa, comprou um carro, comprou os próprios cigarros, as próprias drogas e a própria comida. Em ascenção, feliz, viu ternura no mundo. Sua aspereza encontrou-se com alguma alegria, alguma coisa genuína, e também alguma excentricidade. Os críticos, unanimamente, o chamaram de louco, alguns com elogios, outros com críticas. Ele riu, e respondeu que talvez fosse louco, mesmo.
Depois disso, enclausurou-se, como sabemos. No começo, para tirar fotos e captar a pureza da vida doméstica ou algo do tipo. Queimou a maioria, e guardou apenas as que achou muito boas: o gato do vizinho dormindo, o canto do armário do banheiro, o outdoor da janela da cozinha, o chão de madeira marrom do quarto menor e a caneca azul com a asa quebrada. Depois, perdeu a vontade de conviver com tudo lá fora e resolveu se desintoxicar. Da sua loucura, talvez, ou do que o mantinha com os que o achavam louco. Bem, ele pensava, ficar perto desta gente é loucura ou intoxicação cerebral.
Avançando mais no tempo, o dia era um sábado em maio e James encolhia-se num canto da sala, apavorado. Ele havia se tornado paranóico, tinha medo de si mesmo e dos hábitos que havia adquirido. Estava ali há muitos minutos ou horas e, pela primeira vez, sua obsessão por pensamentos tomou forma, e era uma conclusão tão acachapante para ele, e ainda assim tão óbvia e absoluta que, como na vez do carteiro, ela saiu em voz alta. Foi desencadeada por nada, já que nada acontecia há muito tempo e despencou para sua boca como se estivesse tomando forma há dias, meses:
- O mundo está cheio de gente sem nada para falar, e com vícios desprezíveis. Ainda assim, são pessoas, e estão sujeitas a isso e eu estou sujeito a amá-las. Qualquer que seja minha decisão em relação a elas, falar ou calar, devo me manter firme em meus propósitos e crenças, porque deveriam ser coisas diferentes. Cessar minhas atividades e ser devorado por pensamentos esquizofrênicos só me fará mais desqualificado do que qualquer um que eu venha a julgar. Aceitar os outros e ver beleza no que eles fazem é beneficiar a mim mesmo.
Então, levantou-se, destrancou a porta e a abriu. Sorriu ao ver o semáforo, verde como a grama.