Meu melhor texto pra Tribuna até agora. Enjoy.
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“O que me fez ter esperança no futuro da poesia foi o concerto dos Rolling Stones que vi no Madison Square Garden [Nova York]. Mick Jagger estava cansado e todo detonado. Era uma terça-feira, ele tinha feito dois shows e estava de fato à beira de um colapso – mas o tipo de colapso que transcende para a mágica. Jagger estava tão cansado que precisou da energia da plateia. (...) Adoro a música dos Rolling Stones, mas o principal não foi a música, mas a performance, a performance visceral.”
A citação acima foi tirada do livro sobre a história do punk, Mate-me Por Favor, num depoimento da maior enganadora da época, Patti Smith. Num movimento musical cheio de charlatões e enganadores, ser o maior deles é um feito. Patti, até montar sua banda e gravar seu primeiro disco, não passava de uma fã de rock and roll e Rimbaud que circulava pelo meio “descolado” dos pré-punks de Nova York. Ela se importava mais em saber se seu cabelo estava parecido com o de Keith Richards e em quem eram seus amigos do que em aprender a tocar um instrumento. Uma poseuse de primeira linha.
No entanto, Patti foi capaz de transformar toda a sua adoração pelos símbolos da contracultura em catarse. O fenômeno observado por ela no show dos Rolling Stones está para sempre representado em seu disco de estreia, Horses, de 1975. Você pode ouvir a voz ofegante de Smith soletrando, pedindo clemência, amaldiçoando e conseguindo a redenção. Naquele ano, os hippies estavam acabados, a guerra do Vietnã também e toda essa necessidade de redenção era reflexo de um mundo megalomaníaco e de ideais esvaziados.
A resposta nesse cenário desolador, como não poderia deixar de ser (e vem sendo desde a alvorada dos tempos), foi a fé. No caso de Patti Smith, no rock. No caso de Tim Maia, numa seita esquisita, que “não é doutrina nem religião”. O panorama sociocultural no Brasil do mesmo ano de 1975 era diferente dos Estados Unidos nas particularidades, mas não na essência. A ditadura militar começava a abrandar, mas o estrago já estava feito. O brasileiro vivia num país atrasado e as feridas abertas pelos militares ainda não haviam cicatrizado.
Tim Maia costumava dizer que praticava triatlo: bebia, fumava e cheirava. Vivia uma vida hedonista, de festas e excessos. Até que, em algum momento no início dos anos 70, encontrou respostas na Cultura Racional, uma espécie de doutrina fundada por Manoel Jacintho Coelho. Ficou claro para todo mundo que a seita era pura picaretagem, mas Tim, finalmente sóbrio e iluminado pelo que acreditava ser a sabedoria suprema do Universo, cunhou dois de seus melhores álbuns entre 1975 e 76. Depois, percebeu que tudo aquilo era uma grande bobagem e voltou para o “triatlo”.
Entre pessoas que gostam de música pop, por alguma razão, o número de ateus, agnósticos e gente que simplesmente não dá bola pra religião ou Deus é altíssimo. Ainda assim, Horses e os dois volumes da Fase Racional são considerados clássicos até hoje. Por que relevamos a pose de Patti Smith? Por que fazemos vista grossa para a religião bizarra pela qual Tim Maia se embrenhou? Por que não nos constrange nem um pouco uma música como Grande Deus, de Cartola, ou os velhos spirituals entoados por Elvis Presley, Johnny Cash e tantos outros pioneiros?
A explicação está no fato de que música é devoção. Quando empregamos toda a nossa energia numa escala pentatônica, ou quando somos levados a outro mundo por uma melodia, estamos vivenciando uma experiência de fé. No momento em que deixamos uma pessoa em cima de um palco ditar como será nossa próxima hora e meia, entregamos nossa alma a ela da mesma forma que um fiel se entrega ao pastor, ao padre, ao rabino. É uma comparação meio assustadora, ainda que inevitável. Mas deixa pra lá. Enquanto a música não te pedir dízimo, está tudo certo.