Quando meus pais foram tentar me batizar (eventualmente eles conseguiram), o primeiro padre disse que, por eles não serem casados, eu era o filho do pecado. Meu pai mandou o cara tomar no cu e molhou a mão do próximo padre, que fez o batismo feliz da vida. Eles não casaram, mas continuaram juntos pelos próximos 17 ou 18 anos, o que torna a história meio que uma anedota familiar.
Mas o motivo dessa história ter algum tipo de significância para mim reside no modo como o “conservador” (nesse caso, o batismo) e o “liberal” (casamento não-oficial, por exemplo) ficam se fundindo na minha vida. Veja bem: sou filho temporão, meu pai nasceu em 1949 e eu sou fruto da era digital, ou coisa que o valha. Minha índole me diz que as regras (quase) todas são no mínimo infringíveis, mas minha família formada nos anos culturalmente reprimidos do pós-ditadura sugere que o bom cidadão é aquele que segue o "curso natural" das coisas.
Do lado da minha mãe, que compreende meus tios e avó, temos pessoas vigorosas e empreendedoras, trabalhando feito camelos, colocando sempre o dever acima da diversão. Do lado paterno – ou seja, meu pai e meus irmãos mais velhos, porque não tenho muito contato com os tios –, as pessoas são práticas, objetivas e pragmáticas, atraídas pelo dinheiro fácil do mundo financeiro (se você for capaz de lidar com números). É fácil perceber que não há muito espaço para a imaginação em nenhum dos dois cenários.
Minha primeira lembrança é na escolinha, derrapando no chão de madeira da sala de brinquedos. Lembro da visão de um dos joelhos para cima, decorado com um machucado ainda novo, avermelhado. Não sei se tinham passado Merthiolate, mas me recordo de uma ou duas experiências chatas com ele. Depois disso, lembro de brincar com tatu bola e de correr do irmão mais velho e semi albino do meu amigo mentiroso, que teimava em me chamar de gordo (e eu não era!)
Nunca entendi por que eu era especialmente perseguido nos colégios, mas também sei que não era santo. Rir da cara dos outros sempre me pareceu algo divertido demais para não fazer. Mais uma vez minha conduta contradizia as normas não-oficiais da família Gesualdi Barboza. Meu pai sempre foi um cara mais ou menos pacifista, o que hoje em dia eu vejo como uma coisa legal. Mas quando ele me dizia coisas como “responde que você pode emagrecer, enquanto ele é feio e isso nunca vai mudar”, me sentia ainda mais desamparado. Claro que isso nunca vai afetar ele, pai! Teria sido menos traumático se tivesse me ensinado a dar uns murros na cara do imbecil.
Então, a irmã de um amigo, da classe do maluco que me perseguia, me ensinou um pouco de defesa pessoal. E sem levantar um dedo. “Chama ele de sundownzinho”. Perfeito. Chamar o garoto semi albino de sundownzinho me pareceu genial. É daí que lembro de correr dele, enfurecido. Ponto para mim, tirei o babaca do sério. E aprendi a maior de todas as lições na prática da discussão verbal: tocar no ponto mais fraco e humilhante do inimigo, sem dó.
Friday, July 30, 2010
Batismo
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Monday, July 26, 2010
No Recreio: Colorido versus Sertanejo Universitário
Ficou bastante singelo esse texto. Saiu na Tribuna em junho.
Jenifer tem 14 anos e está na oitava série, ansiosa para chegar logo ao ensino médio. Sua vida é bem normal para uma garota de sua idade. Ela vai para a escola, consegue passar raspando em química e matemática, conversa sobre coisas de garota com suas amigas no intervalo e suspira pelos gatinhos do segundo colegial. Ao chegar em casa, almoça e corre pro computador, onde acessa seu Orkut, abre o MSN e se engaja em sua função favorita: a de fã do Restart.
Jenifer gasta toda a mesada com produtos relacionados ao grupo, desde ringtones até camisetas. Liga na rádio para pedir a música deles, discute com outros fãs na comunidade do orkut e passa horas no Messenger planejando uma ida ao próximo show da banda. A devoção é tanta que a única apresentação do Restart presenciada pela garota figura entre os top três momentos de sua vida (ou assim diz a emoção).
Em geral, ela é uma adolescente que se dá bem com a maioria das pessoas no colégio. A única rixa da turma de Jenifer, assim como ela, fã de Restart, é com a turma da Joyce, todos fãs de Luan Santana. O cantor sul-mato-grossense, do hit Tô De Cara, faz o tipo de Joyce e suas amigas porque é gatinho e toca um tipo de country/sertanejo que poderia muito bem ser confundido com pop rock americano. O som dele não incomoda Jenifer (que até já se pegou cantarolando uma ou outra faixa do cantor). O grande problema é que Luan e suas fãs são mais comuns, mais populares e não se enquadram no estilo multicolorido do Restart.
Joyce, por sua vez, acredita que a cara alternativa dos policromáticos é muito afetada. “Coisa de gente que quer ser mais do que é”, ela comenta com os chegados. Tanto Jenifer quanto sua antagonista não dão muita bola para isso, mas poderiam incluir entre seus argumentos a velha guerra entre independente e mainstream: Santana é da Som Livre, enquanto o Restart faz parte da pequena Maynard Music. Ambos, no entanto, fazem sucesso similar.
Mesmo ignorando alguns argumentos mais consistentes (e talvez justamente por isso), Stella e Mari, amigas de Jenifer e Joyce, respectivamente, acabaram discutindo na semana passada. Quase saíram na mão. O motivo, torpe, você já deve imaginar qual foi. O diretor da escola, Seo Olavo, quarenta e nove anos, dois divórcios nas costas e um vício chato em café, não estava num bom dia para picuinhas adolescentes. Chamou os dois grupos para uma conversa, a fim de entender qual a grande diferença entre Luan Santana e Restart.
Primeiro perguntou a cada grupo o motivo de tanta adoração aos artistas. As respostas das meninas foram quase que rigorosamente iguais: meninos bonitos que falam sobre o universo delas. “E como é esse universo?” Mais uma vez, réplicas quase idênticas. Amizade, escola, saídas, namoradinhos... O litro de café ingerido pela manhã começou a confundir a cabeça do diretor, que resolveu procurar, então, os pontos divergentes.
“Por que você não gosta de Restart?”, perguntou a Joyce. “Olha, Seo Olavo, não é que eu não gosto de Restart. É só que eles são muito frutinhas, sabe? Essas roupas coloridas... E os fãs se acham os diferentes”. A mesma pergunta foi feita a Jenifer, dessa vez em referência a Luan Santana. “Ah, professor. Eu acho esse Luan muito zé povinho. O Restart, sim, entende a gente, os alternativos”. Sem encontrar muita sustança nas respostas, inquiriu: “Mas ‘pera lá. Pelo que eu sei, tanto Restart quanto Luan Santana andam bastante populares. Como é que um é zé povinho e o outro alternativo?”
Carlinha, a mais informada entre as coloridas, revelou que o sertanejo andava aparecendo no Faustão para receber prêmios de TV de Domingo. O que ela não contava é que Juju, sua contraparte country, também tinha um dado na ponta da língua: “Ei, e seu querido Restart? Esses dias mesmo apareceu no Gugu”. Em minutos, sem que percebessem, as meninas entraram numa espiral de contradições e confrontamentos. Não sabiam mais se defendiam o lado alternativo de seus ídolos ou se expunham, com orgulho velado, suas conquistas profissionais. As conquistas, aliás, vinham em maior número e aproximavam cada vez mais coloridos e sertanejos.
O diretor, confuso, coçou a quase-careca e ajeitou os óculos. Ficou observando a discussão por algum tempo e tomou mais um gole de café, até que desistiu. Interrompeu a algazarra com a pergunta-chave daquela reunião enviesada. “Afinal de contas, qual a grande diferença entre o Luan e o Restart?” Nenhuma das garotas se prontificou a responder. Encararam Seo Olavo com olhares confusos, em silêncio, por quase dois minutos, até que foram dispensadas para o intervalo.
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Tuesday, July 20, 2010
Ronnie James Dio e o Escapismo do Heavy Metal
A morte de Ronnie James Dio revelou o tamanho do abismo que existe entre o heavy metal e o “mundo real”. E, como prevíamos, ele é imenso. Seu falecimento teve manchetes em todos os principais veículos de notícia, além de ter inspirado notas de pesar e declarações emocionadas acerca de sua pessoa e seu trabalho. Mas tudo isso, claro, pela grata posição que ocupou durante anos de sua vida: a de membro do Black Sabbath.
Para entender Dio e as declarações do parágrafo anterior, primeiro precisamos entender as duas faces existentes do metal. A face clássica, sombria, iconoclasta, que surgiu do descontentamento hippie, e a face meio constrangedora, dos moleques pré-adolescentes e suas camisas puídas do Nightwish.
O heavy metal viu a luz do dia no final dos anos 60, com a sonoridade selvagem do Blue Cheer e seu primeiro álbum, Vincebus Eruptum. Um pouco depois, Ozzy Osbourne, Tony Iommi, Geezer Butler e Bill Ward formatariam a temática e o humor do estilo com seu Black Sabbath. A idéia era simples: se as pessoas pagam ingressos para se assustar com filmes de terror, por que não tentar um conjunto musical de terror? Aliado a isso, havia o desgosto de quatro jovens da cinzenta Birmingham, sem muitas perspectivas para o futuro nem identificação com os hippies coloridos e despreocupados. Ou seja, o metal nasceu dentro de quatro caipiras entediados e com vontade de assustar um bom número de incautos.
Só que um povo meio burro entendeu errado toda essa mensagem e apareceu com o começo do fim, também conhecido por New Wave of British Heavy Metal. Dentro do movimento, Iron Maiden e Saxon, que levaram a premissa da banda de terror a lugares risíveis. Até hoje, tenho Bruce Dickinson e seu shots de lycra como referência de música ruim. Pior mesmo foi o movimento que desencadearam: o power metal, ou metal melódico. A referência primal dessas bandas, com seus cabelos cheios de laquê e letras sobre elfos e duendes não é aquele Sabbath de 1969, que fazia as criancinhas molharem as calças. É outro.
Ozzy foi demitido do Black Sabbath e substituído pelo vocalista do Rainbow, Ronald James Padavona, o Dio, em 1979. A interpretação de Dio destoava demais do que fazia seu predecessor, porque era forte, épica, expansiva. Claro, Padavona sempre foi melhor cantor do que Osbourne. A partir disso e dos peitos cabeludos – mutcho machos – que inundavam o heavy metal do começo dos anos 80, o Black Sabbath se tornou outra banda, mais teatral, mais óbvia. Dio, junto com outros metalíferos de sua época, tornou-se exemplo de integridade e postural “metal”.
O problema é que, na “vida real”, o mundo estava em outra. O punk e o pós-punk seguiam muito mais pelo caminho niilista do Black Sabbath do que o próprio Black Sabbath. Os embriões do hip hop, a disco music, o revival do country, nada disso apontava para elfos, castelos, morte, bicho-papão. Durante a guerra fria, o escapismo deu lugar ao conformismo e ao combate, por isso guerreiros vestidos com calças de couro em palcos de 12 metros de altura pareciam arcaicos e constrangedores. Daí, o metal institucionalizado por Dio deixou o Planeta Terra para sempre. Hoje em dia, ele reside nessas camisetas de banda e na molecada perseguida na escola. Costuma, inclusive, ficar por lá quando esses adolescentes crescem.
O nefasto da obra de Ronnie Dio não são suas bandas e LPs, e sim seu legado. O respaldo que deu a múmias, castelos, cavalos e espadas forçou a entrada do escapismo num estilo bastante lúcido, ainda que pessimista. Assim, trouxe também o ostracismo para si mesmo (o que, para certos fãs de metal, é um símbolo de honestidade).
Engraçado que, nos últimos tempos, o metal tem ressurgido entre as pessoas “normais”, apesar do desvio de percurso que foi a NWOBHM e a fase de Dio no Black Sabbath. Por causa dessa clausura forçada, alguns metaleiros realmente extremos, influenciados por Thrash Metal e Stoner Rock (por sua vez influenciados diretamente pelo Sabbath do começo – acompanhou?) surgem como a verdadeira opção do underground frente um mainstream cada vez mais afetado, mais ou menos como era em 69. Ainda bem, porque se não fosse a música pesada, talvez minha vida não tivesse mudado quando escutei Queens of the Stone Age e System of a Down aos 12 anos.
Postado por Jambo Ookamooga às 8:15 AM 0 comentários