Friday, October 06, 2006

Escrito há algum tempo

É comum não saber exatamente a sua posição no momento em que se acorda. Mas não era esse o caso daquele homem. Esfregou os olhos, ciente de que aquele seria o dia que faria sua vida ter sentido. 25 anos validados por apenas um período de rotação na terra sobre seu próprio eixo.

Olhando para trás, ele via que nunca havia realizado nada, nem tido grandes momentos. Felicidade e tristeza quando poucas causam profunda monotonia.

Nunca havia amado alguém com força, nunca ficara estonteado pela presença de ninguém, não perdera parentes, nunca aparecera na TV, nem tinha um cachorro famoso. Os momentos marcantes na vida de um ser humano para ele não significaram nada. Talvez por ser tão acostumado com a pasmaceira da sua vida, ele também não atribuiu a devida importância àqueles momentos. Talvez por apatia, talvez por medo.

Apenas amou a música. Amou com força, com todo o seu ser. Tentou amar outras coisas, tentou amar algumas garotas, mas enjoava de tudo. Até da música em alguns momentos, sejamos sinceros. Como toda pessoa que não está satisfeita, ele culpou. Culpou a si mesmo, culpou à solidão, culpou aos amigos, culpou a Deus. Deus? Nem acreditava mais em Deus. Não precisava. Acreditar em algo que nunca o mostrou nada? Ou até mostrou, mas ele nunca foi capaz de agarrar o que lhe foi mostrado e nunca mais soltar. E daí culpava a si mesmo, outra vez.

Mas naquele dia, tudo isso ia mudar. Cumprisse o que estava para cumprir e os namoros ruins que teve, as músicas ruins que ouviu, os empregos do qual fora demitido, as horas entediado na frente da televisão e todo o ódio que sentira pelos pais nos momentos em que eles foram burros o suficiente para serem engolidos no próprio ego e agirem de maneira totalmente tirana seriam momentos sublimes. Algo na sua cabeça apontava que ele dificilmente sentiria raiva de novo. Ou decepção. Aquele evento vindouro ia sepultar os momentos ruins. Uma vida de alegrias esperava aquele homem.

Cheio de expectativa, espreguiçou-se ainda na cama. Levantou e olhou-se no espelho. Estava com a aparência digna de um vencedor. Ou pelo menos de quem estava para se tornar um. Atos como tomar banho ou escovar os dentes pareciam só atrasar a chegada do grande momento. Mas eram necessários, porque higiene e uma cara boa são imprescindíveis para vencedores. “Já sou virtualmente um vencedor, afinal. Algumas horas não podem me separar mais de ser um”, pensou.

Por causa de todo infortúnio da sua vida até o dia anterior, ainda não tinha carro. Era justificável, enfim... Subiu no ônibus em direção à glória. Podia imaginar todo o reconhecimento que receberia. Aos que o invejassem, faria questão de esfregar na cara todo o seu sucesso. Veio à mente a imagem de uma pessoa em particular, e um sorriso brotou no canto esquerdo de seus lábios.

Cada minuto era uma vida, e cada quilômetro milhares de anos-luz. Mas valia a pena esperar. Valia a pena desfrutar dos últimos momentos de vida miserável. “Sou um ser iluminado.”, pensava “Tolos não seriam capazes de tamanha sensatez”. E era de fato um homem sensato. Apesar da solidão, da apatia e eventual rancor, apresentava grande sensatez em várias ocasiões. Chamavam-no de frio, mas era pura e simples sensatez, justificava.

O automóvel parou. Estava a poucos degraus do sucesso. Fazia sol. Os céus sorriam para a coroação daquele indivíduo. Olhou para o grande bloco de concreto à sua frente. “É aqui que me tornarei alguém”, suspirou. Contemplou a rua pela última vez e entrou.

Passada uma hora, saiu pela mesma porta que entrou. O olhar estava turvo, os membros leves. Flutuava pela rua pensando como sua vida estava mudada. Não seria mais um jovem infeliz, não seria mais um homem ranzinza, não seria mais um velho arrependido. O ruído da multidão na rua era um leve farfalhar à distância. O chão não existia, assim como o céu. Ele se integrava ao mundo, assim como o mundo era a sua própria existência. Não tinha visões nem falsas sensações, era tudo real. Podia ouvir o cheiro das pessoas, e tocar a cor cinza da calçada.

Flutuou pela última vez, até que um baque o trouxe de volta à realidade. Começou por sentir a costela, depois as pernas, o braço e por fim o resto do corpo. Demorou a perceber o que estava sentindo, pois ainda estava embriagado pelo êxtase, mas, segundos depois, não teve dúvida: Era dor. Não entendia porque, mas estava deitado no chão, com dor. Pessoas gritavam ao seu redor, e ele ouvia sirenes. Sentia a realidade mais uma vez, e de forma dura. Como o homem bem sucedido que era, não admitia a situação atual, em que via primeiro o joelho das pessoas e depois suas cabeças. Decidiu, por fim, que não tinha que agüentar aquilo e se retirou. Mas por escolha própria. Vencedores como ele podem escolher, sim, até o momento de sua morte.

Morreu, é verdade, mas não sem antes se tornar grande.


Escrito em 30 e 31 de agosto de 2006. Ouvindo o sétimo álbum do Pearl Jam, Riot Act e o quinto do Led Zeppelin, Houses of the Holy. Terminei com o magnífico Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, no dia seguinte. Escrevi a última frase no momento anterior ao solo de vocal de The Great Gig in the Sky.

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